Marcos Ramon

Cientificamente comprovado


A melhor forma de iniciar uma discussão sobre o valor da ciência é apresentando um conceito. O que eu trago aqui é um conceito bem genérico, é verdade, mas que atende satisfatoriamente a nossa percepção sobre o que é a ciência e o que podemos esperar dela:

“A ciência é um conjunto de conhecimentos caracterizados por um objeto e um método determinados e fundados sobre relações objetivas verificáveis”.

Essa definição sintetiza algumas crenças modernas sobre o fazer científico, a presença do método, o foco em objetos específicos de análise, a verificação… Mas será que a construção lógico-matemática, na qual se baseiam as teorias científicas e a possível verificação de hipóteses, refletem a estrutura da realidade? Penso que é mais provável simplesmente o fato de que nós aceitamos (ou queremos acreditar) que a ciência é capaz de descrever, explicar e solucionar problemas do mundo real. E sim, é uma crença. Temos uma relação de confiança na ciência e mesmo uma dependência desta crença; pois é ela, e só ela, que pode sustentar a racionalidade do mundo previsível e manipulável que defendemos existir.

Com isso não nego as evidências da realidade. Os avanços da ciência e da técnica trouxeram melhorias para a vida humana. Vivemos mais e de maneira mais confortável do que nossos antepassados. Temos mais acesso à informação, à cultura; existe uma sensação de prazer na vida, baseada justamente naquilo que Max Weber chamava de desencantamento do mundo. Mas não acredito que essas evidências do que conquistamos com a ciência nos bastem para confiarmos nela. Ou melhor: para confiarmos em nós mesmos.


O filósofo Karl Popper escreveu que a verificação não basta para assegurar a verdade de uma teoria científica. Todos os dias o sol vai nascer e se pôr? A relação que temos com a gravidade será sempre a mesma? No hemisfério sul vai fazer mais frio em Julho e mais calor em Janeiro? Não temos garantias sobre essas coisas. Ainda que a nossa experiência cotidiana nos diga que sim, que tudo isso vai continuar ocorrendo, o fato é que uma explicação científica — uma demonstração de como ocorrem regularidades na natureza, por exemplo — não é um sinônimo de verdade. Por isso Popper afirmava que a boa teoria científica não é a que defende uma verdade, mas sim aquela que é passível de ser falseada, ainda que virtualmente. Mas parece que esquecemos o conselho de Popper e defendemos com unhas e dentes a verdade na ciência, nos seus procedimentos, nas suas afirmações.

Mas em alguns casos isso nem é culpa da ciência, mas sim do nosso desejo em defender qualidades que nem mesmo a ciência diz possuir. Vou utilizar aqui um exemplo genérico para falar sobre isso, mas certamente você já ouviu outros assim. Em 2013, o Instituto Max Planck, na Alemanha, desenvolveu uma pesquisa que procurava entender como o ato de jogar videogame pode ser benéfico para o cérebro. Com a pesquisa os estudiosos perceberam que a exposição contínua a determinados jogos, como Super Mario 64, ajuda a desenvolver o cérebro em reação à orientação espacial, memória, planejamento estratégico e algumas habilidades motoras. São resultados interessantes mas que, como os próprios pesquisadores frisavam na publicação original, não comprovam que jogar videogame será efetivo para toda e qualquer pessoa do mesmo jeito. No entanto, os sites de tecnologia, games e cultura pop disseminaram a informação como sendo uma grande descoberta. Vou ler aqui os títulos de algumas destas matérias de alguns importantes portais de notícias e blogs que noticiaram o fato na época:

Tá vendo? Idolatramos tanto a ciência que distorcemos até mesmo suas intenções. O que concluo desse exemplo é o seguinte: a ciência é um tipo de religião moderna! Mas então, qual é a saída? Negar a ciência. Também não. É preciso aprender a utilizar o ceticismo de maneira correta.


Francis Bacon escreveu que a meta da ciência deve ser sempre o melhoramento da vida humana na Terra. E como podemos fazer isso? Coletando fatos com observações organizadas e construindo teorias derivadas dessas observações. Essas ações, não necessariamente simples, permitiriam, na interpretação de Bacon, um contínuo desenvolvimento técnico e possibilidade de um progresso social e humano. Em partes, foi exatamente isso que aconteceu. E digo em partes porque a melhora da vida humana não depende apenas de meios técnicos, mas também de interesses políticos, culturais, enfim, de coisas bem mais subjetivas do que as teorias científicas pretendem ser.

Mas o senso comum sobre a ciência nos diz apenas que conhecimento científico é conhecimento comprovado, é verdade testada e demonstrada. E nós acabamos acreditando em toda divulgação de pesquisa científica que chega até a gente com gráficos, porcentagens e conclusões derivadas de experimentos. Mas será que a ideia de uma comprovação na ciência se aplica mesmo a toda e qualquer ciência?

Para Thomas Kuhn, autor do livro “A estrutura das revoluções científicas”, de 1962, o que importa no fazer científico não é a sua capacidade de alcançar verdades absolutas, mas sim a sua relevância histórica e a dinâmica do progresso científico que, na interpretação deste autor, ocorre através da adesão a determinados paradigmas. A teoria de Kuhn pode ser sintetizada em algumas etapas simples:

  1. pré-ciência, o momento em que ainda não possuímos conhecimentos estabelecidos na comunidade científica em determinada área;
  2. ciência normal, quando a comunidade adere à uma interpretação ou teoria que aborda o tema em questão;
  3. crise-revolução, quando a teoria começa a apresentar problemas internos que não são facilmente resolvidos, demandando o surgimento de novas teorias;
  4. nova ciência, algo que se dá quando a comunidade científica migra para uma explicação mais viável que a anterior;
  5. nova crise, que são problemas e falhas na nova teoria que nos levam a uma nova ciência normal e assim por diante.

Para exemplificar a tese de Kuhn um bom exemplo é a teoria copernicana. Por muito tempo convivemos com a ideia do sistema ptolomaico, em que a Terra é considerada o centro do universo. A adoção do sistema copernicano, em que Sol passa a ser o centro do nosso sistema, ocorreu não porque era verdade, mas por outros motivos: porque era uma forma mais simples de explicação, porque favorecia uma reforma no calendário ou porque era uma forma de combater determinados dogmas religiosos. Todas essas respostas são válidas, mas não expressam necessariamente verdades.

Pra terminar trago uma reflexão que é desenvolvida por Max Weber em uma conferência chamada “Ciência como vocação”. Nessa conferência Weber afirma que “nada tem valor para o homem se não for feito com paixão”. E a ciência, como toda e qualquer atividade humana, depende de pessoas que assumam o seu compromisso e os seus propósitos. Para explicar o que a ciência é Weber estabelece uma relação entre a arte e a ciência. Na interpretação deste autor, a ciência está inserida na corrente do progresso. No campo da arte, por outro lado, não existe nenhum progresso. Uma obra de arte realmente acabada nunca será ultrapassada, nunca envelhecerá. Mas com a ciência ocorre algo bem diferente: a ciência, a autêntica ciência, quer ser ultrapassada, quer envelhecer. Esse é o destino da ciência: propor novas questões, ser superada e persistir, insistir. E isso porque nós, como seres humanos, temos o desejo de saber, de entender a realidade. O conhecimento é o nosso destino.

Gif por Nicolas Monterrat

Esse texto foi escrito originalmente como roteiro para um episódio do podcast Ficções, publicado em 2015

Marcos Ramon

Marcos Ramon

Professor no Instituto Federal de Brasília, pesquisando ensino, estética e cibercultura. Lattes | ORCID | Arquivo
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Marcos Ramon / Professor de Filosofia, pesquisando estética e cibercultura.

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