Marcos Ramon

O gênio maligno


Descartes, apesar de não ser cético, utilizava o ceticismo como método. O filósofo francês, considerado por muitos como pai da Filosofia Moderna, defendia que devemos duvidar de tudo num primeiro instante. Mas, diferentemente dos céticos, ele não acreditava que deveríamos parar na dúvida; é preciso superá-la para produzir conhecimento e, sim, é possível fazer isso com o uso das nossas capacidades racionais, algo que os céticos negavam.

É assim que Descartes chegou à tese, aparentemente estranha, especialmente para um cristão como ele, de que Deus talvez não exista, mas exista em seu lugar um gênio maligno, um ser que nos criou para sua diversão e nos trata como marionetes, manipulando nossas vidas, se deliciando com nossas alegrias e sofrimentos. Na primeira “Meditação”, Descartes escreve:

“Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender minha credulidade” (Descartes. Meditações)

O que Descartes imaginou, em 1641, foi o pesadelo de todos os programadores de hoje, que não conseguem encontrar uma certeza que lhes diga que não estão presos dentro de uma programação. Se for possível um dia criar uma realidade simulada tão perfeita quanto o próprio mundo real, como poderíamos saber que não estamos nessa simulação? A resposta de Descartes é que não temos como saber. Mas pelo menos sabemos que existimos. Se existir um gênio maligno que me engana, eu preciso existir para que ele possa me enganar. E como eu sei disso? Porque eu penso, logo existo. Descartes também desconsidera em seguida a hipótese do gênio maligno discutindo as qualidades e atributos de Deus.

Ainda assim, atualizando o argumento dele para o mundo simulado e desconsiderando a interferência de Deus nesse processo, ainda vale a primeira resposta: nunca teremos como saber se estamos sendo enganados ou não. Se vale de consolo, ninguém pode tirar de nós essa certeza absoluta: eu e você, sem dúvida alguma, existimos (ainda que cada um de nós só saiba disso individualmente). Mas será que isso é o bastante para vivermos em paz?

Cena do filme “Quero ser John Malkovich

Marcos Ramon

Marcos Ramon

Professor no Instituto Federal de Brasília, pesquisando ensino, estética e cibercultura. Lattes | ORCID | Arquivo
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Marcos Ramon / Professor de Filosofia, pesquisando estética e cibercultura.

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