Marcos Ramon

O valor do absurdo


Lembro de uma aula em que o meu professor de literatura (ainda no Ensino Médio), falando sobre vanguardas, mencionou o surrealismo. Quando terminou a aula fui à biblioteca procurar livros sobre o assunto e aquele me pareceu desde logo o movimento de vanguarda mais interessante. Ainda hoje penso assim. Inclusive, por muito tempo, eu tive um blog chamado Arcano5. Esse título era uma variação de um dos meus livros preferidos, Arcano17, de André Breton, o fundador do movimento surrealista.

A palavra “surrealismo” foi criada, provavelmente, pelo poeta francês Apollinaire. Pelo que se sabe, ele usou a palavra duas vezes em 1917. A primeira vez foi para descrever uma peça dele mesmo. A peça se chamava “As mamas de Tirésias” e conta a história de uma mulher que não queria ser mãe. Ela diz que preferia ir à guerra do que se mãe e vê os seus seios se desprendendo do corpo. O marido dela diz então que iria ter os filhos por conta própria e, de fato, dá a luz a 40.049 bebês. Como o próprio Apollinaire dizia, um drama surrealista.

A outra vez que Apollinaire usou a palavra, ainda no mesmo ano, foi para se referir a um espetáculo de dança. Mas não de qualquer companhia, e sim do famoso balé russo de Diaghilev. Diaghilev era um empresário russo que fazia fama em Paris no início do século XX com o seu balé. Diaghilev, além de muito carisma, conseguia unir grandes artistas em torno do seu empreendimento. Ele tinha, por exemplo, o grande dançarino e coreógrafo Nijinsky trabalhando com ele, e conseguia colaboração de grandes artistas da época, como o músico Stravinski, e um pintor, ainda não tão famoso na época, Picasso.

O balé de 1917, sobre o qual Apollinaire escreve, se chamava “Desfile” e, se não era tão absurdo quanto a peça que mencionei, vale dizer que contava com texto de Jean Cocteau e música de Erik Satie, um compositor conhecido como precursor do minimalismo e da inclusão de sons de objetos do cotidiano em suas composições. A música era caótica e o espetáculo fazia alusão ao mundo do circo. Considerando o ambiente reservado ao balé, principalmente naquela época, o espetáculo fazia jus à expressão que Apollinaire utilizou para classificá-lo: “um tipo de surrealismo”, ele escreveu.

Apollinaire, morreu no ano seguinte, 1918, vítima da gripe espanhola. Mas um jovem escritor, que teve a oportunidade de conhecê-lo, resgatou esse termo, surrealismo, para um movimento de vanguarda que estava criando. O escritor, obviamente, era André Breton e o movimento se efetivou com a publicação do manifesto surrealista, em 1924. André Breton estava interessado nas pesquisas da psicanálise sobre o inconsciente e sobre a possibilidade de uma arte que fugisse de um ideal de controle da razão. O romance Nadja, por exemplo, foi escrito, como muitos textos surrealistas, em estado de vigília, naquele momento entre o sono e a realidade, em que estamos acordados, mas já não controlamos inteiramente nossos reflexos, pensamentos ou raciocínios. É desse livro, inclusive, a que, pra mim, é a melhor frase de fim de um romance (se é que a gente pode realmente chamar Nadja de um romance). Na última linha Breton escreveu: “a beleza será CONVULSIVA ou não será nada”. Essa frase não é uma explicação de nada em específico presente no livro mas consegue, ainda assim, dizer muito. E era exatamente isso que o surrealismo queria resgatar, o valor do absurdo.

O balé “Desfile”

Esse texto foi escrito como roteiro de um episódio do podcast Ficções, publicado em 2018

Marcos Ramon

Marcos Ramon

Professor no Instituto Federal de Brasília, pesquisando ensino, estética e cibercultura. Lattes | ORCID | Arquivo
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Marcos Ramon / Professor de Filosofia, pesquisando estética e cibercultura.

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